Sumário

Dostoiévski, F. Memórias do subsolo Zapiski iz Podpolya Tradução de Boris Schnaiderman São Paulo Editora 34 2009 (6ª edição) Tanto o autor como o texto destas memórias são, naturalmente, imaginários. Todavia, pessoas como o seu autor não só podem, mas devem até existir em nossa sociedade, desde que consideremos as circunstâncias em que, de um modo geral, ela se formou. O que pretendi foi apresentar ao público, de modo mais evidente que o habitual, um dos caracteres de um tempo ainda recente. Trata-se de um dos representantes da geração que vive os seus dias derradeiros. No primeiro trecho, intitulado “O subsolo”, o próprio personagem se apresenta, expõe seus pontos de vista e como que deseja esclarecer as razões pelas quais apareceu e devia aparecer em nosso meio. No trecho seguinte, porém, já se encontrarão realmente “memórias” desse personagem sobre alguns acontecimentos da sua vida. [Nota de F. M. Dostoiévski] Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso.) Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Ora, eu compreendo. Naturalmente não vos saberei explicar a quem exatamente farei mal, no presente caso, com a minha raiva; sei muito bem que não estarei a “pregar peças” nos médicos pelo fato de não me tratar com eles; sou o primeiro a reconhecer que, com tudo isto, só me prejudicarei a mim mesmo e a mais ninguém. Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais. Já faz muito tempo que vivo assim: uns vinte anos. Tenho quarenta, agora. Já estive empregado, atualmente não. Fui um funcionário maldoso, grosseiro, e encontrava prazer nisso. Não aceitava gratificações; no entanto, devia premiar-me ao menos desse modo. (É um mau gracejo; mas não vou riscá-lo. Escrevi-o pensando que sairia muito espirituoso; mas agora, percebendo que apenas pretendi assumir uma atitude arrogante e ignóbil, não o riscarei, de propósito!) Quando os solicitantes, com pedidos de informações, se acercavam da mesa junto à qual me sentava, eu lhes respondia com um ranger de dentes, e sentia um prazer insaciável quando conseguia magoar alguém. Conseguia quase sempre. Na maior parte dos casos, aparecia gente tímida: era natural, em se tratando de solicitantes. Mas, dentre os que se trajavam com presunção, eu não

II §

Tenho agora vontade de vos contar, senhores, queirais ouvi- lo ou não, por que não consegui tornar-me sequer um inseto. Vou dizer-vos solenemente que, muitas vezes, quis tornar-me um inseto. Mas nem disso fui digno. Juro-vos, senhores, que uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica, completa. Para o uso cotidiano, seria mais do que suficiente a consciência humana comum, isto é, a metade, um quarto a menos da porção que cabe a um homem instruído do nosso infeliz século dezenove e que tenha, além disso, a infelicidade de habitar Petersburgo, a cidade mais abstrata e meditativa de todo o globo terrestre. (Existem cidades meditativas e não meditativas.) Seria de todo suficiente, por exemplo, a consciência com que vivem todos os chamados homens diretos e de ação. Pensais, sou capaz de jurar, que escrevo tudo isso para causar efeito, para gracejar sobre os homens de ação, e também por mau gosto; que faço tilintar o sabre, tal como o meu oficial. Mas, senhores, quem é que pode vangloriar-se das próprias doenças, e ainda procurar causar com elas um efeito? Aliás, que digo: Todos fazem isto; é justamente das doenças que se vangloriam, e eu talvez mais que ninguém. Não discutamos; a minha objeção é absurda. Apesar de tudo, estou firmemente convencido de que não só uma dose muito grande de consciência, mas qualquer consciência, é uma doença. Insisto nisso. Mas deixemo-lo também por alguns instantes. Digam-me o seguinte: por que me acontecia, como se fosse de propósito, naqueles momentos — sim, exatamente naqueles momentos em que eu era capaz de melhor apreciar todas as sutilezas do “belo e sublime” (Alusão à obra de Kant, Observação sobre os sentimentos do belo e do sublime (1764). Segundo afirmação de I. Z. Siérman, em nota à edição

III §

Como é que faz, por exemplo, aquele que sabe vingar-se e, de modo geral, defender-se? Quando o sentimento de vingança, suponhamos, se apodera dele, nada mais resta em seu espírito, a não ser este sentimento. Um cavalheiro desse tipo atira-se diretamente ao objetivo, como um touro enfurecido, de chifres abaixados, e somente um muro pode detê-lo. (Aliás, diante de um muro tais cavalheiros, isto é, os homens diretos e de ação, cedem terreno com sinceridade. O muro para eles não é causa de desvio, como, por exemplo, para nós, homens de pensamento, e que, por conseguinte, nada fazemos; não é um pretexto para arrepiar carreira, pretexto em que nós outros costumamos não acreditar, mas que recebemos sempre com grande alegria. Não, eles cedem terreno com toda a sinceridade. O muro tem para eles alguma coisa que acalma; é algo que, do ponto de vista moral, encerra uma solução — algo definitivo e, talvez, até místico... Mas deixemos o muro para mais tarde.) Pois bem, um homem desses, um homem direto, é que eu considero um homem autêntico, normal, como o sonhou a própria mãe carinhosa, a natureza, ao criá- lo amorosamente sobre a terra. Invejo um homem desses até o extremo da minha bílis. Ele é estúpido, concordo, mas talvez o homem normal deva mesmo ser estúpido, sabeis? Talvez isto seja até muito bonito. Estou tanto mais convencido desta suspeita, por assim dizer, que se tomarmos, por exemplo, a antítese do homem normal, isto é, o homem de consciência hipertrofiada, o homem saído, naturalmente, não do seio da natureza, mas de uma retorta (já é quase misticismo, senhores, mas eu suspeito isto também), o que se verifica, então, é que este homem de retorta a tal ponto chega a ceder terreno para a sua antítese que a si mesmo se considera, com toda a sua consciência hipertrofiada, um camundongo e não um homem. Talvez seja um camundongo de consciência hipertrofiada, mas sempre é um camundongo. Ora, trata-se de um homem e, por conseguinte, de tudo o mais também. E o mais importante é que ele mesmo se considera a si mesmo um camundongo; ninguém lhe pede isto, e este é um ponto importante. Mas vejamos agora este camundongo em ação. Suponhamos, por exemplo, que ele esteja ofendido (quase sempre está) e queira vingar-se. Acumula-se nele, provavelmente, mais rancor que no homme de la nature et de la vérité (Citação do seguinte trecho das Confissões de Jean-Jacques Rousseau: “Je veux montrer à mes semblables un homme dans toute la vérité de la nature ; et cet homme ce sera moi” (Quero mostrar a meus semelhantes um homem em toda a verdade da natureza; e este homem serei eu.). (N. do T.)). É possível que um desejo baixo, ignóbil, de retribuir ao ofensor o mesmo dano, ranja nele ainda mais ignobilmente que no homme de la nature et de la vérité, porque este, devido à sua inata estupidez, considera sua vingança um simples ato de justiça; já o camundongo, em virtude de sua consciência hipertrofiada, nega haver nisso qualquer justiça. Atinge-se, por fim, a própria ação, o próprio ato de vingança. O infeliz camundongo já conseguiu acumular, em torno de si, além da torpeza inicial, uma infinidade de outras torpezas, na forma de interrogações e dúvidas; acrescentou à primeira interrogação tantas outras não resolvidas que, forçosamente, se acumula ao redor dele certo líquido repugnante e fatídico, certa lama fétida, que consiste nas suas dúvidas, inquietações e, finalmente, nos escarros — que caem sobre ele em profusão — dos homens de ação agrupados solenemente ao redor, na pessoa de juízes e ditadores, e que riem dele a mais não poder, com toda a capacidade das suas goelas sadias. Naturalmente, resta-lhe sacudir a patinha em relação a tudo e, com um sorriso de fictício desprezo, no qual ele mesmo não acredita, esgueirar-se vergonhosamente para a sua fendazinha. Ali, no seu ignóbil e fétido subsolo, o nosso camundongo, ofendido, machucado, coberto de

IV §

“Ha, ha, ha! Depois disso, o senhor encontrará prazer mesmo numa dor de dentes!”, exclamareis rindo. — Como não? Há prazer mesmo numa dor de dentes — respondo. — Tive dor de dentes um mês inteiro; sei o que é isto. Neste caso, naturalmente, a pessoa não se enfurece em silêncio, mas geme; no entanto, não são gemidos sinceros, são gemidos maldosos, e tudo consiste justamente nessa maldade. Nesses gemidos é que se expressa o prazer do sofredor; se não sentisse neles prazer, não iria sequer soltá-los. É um bom exemplo, meus senhores, e vou desenvolvê-lo. Nestes gemidos se expressa, em primeiro lugar, toda a inutilidade de vossa dor, humilhante para a nossa consciência; toda a legalidade da natureza, com a qual, naturalmente, pouco vos importais, mas que, apesar de tudo, vos faz sofrer, enquanto ela não sofre. Expressa-se neles a consciência de que não tendes um inimigo, mas a dor existe; a consciência de que, apesar de todos os Wahenheim (Em 1864 apareciam frequentemente nos jornais de São Petersburgo anúncios dos dentistas Wahenheim. (Nota de I. Z. Siérman para a edição soviética de 1956-1958.)), sois plenamente escravos dos vossos dentes; de que, se alguém quiser, os vossos dentes deixarão de doer, e, se não quiser, hão de doer uns três meses mais; finalmente, se ainda não concordais e mesmo assim protestais, resta-vos, para vosso consolo, dar uma surra em vossa própria pessoa ou esmurrar do modo mais doloroso o vosso muro, e absolutamente nada mais. Bem, é justamente por essas ofensas sangrentas, por essas zombarias, não se sabe da parte de quem, que começa por fim o prazer, que chega, às vezes, à suprema voluptuosidade. Peço-vos, senhores: prestai um dia atenção aos gemidos de um homem instruído do século XIX que sofra de dor de Mas isto realmente ocorre porque eu não me respeito. Pode porventura um homem consciente respeitar-se um pouco sequer?

V §

Bem, acaso pode respeitar-se um pouco sequer o homem que tentou encontrar prazer mesmo no sentimento da própria abjeção? Não digo isto agora devido a algum arrependimento melífluo. E, de modo geral, nunca suportei dizer: “Desculpe, papai, não vou mais fazer isto”, não porque eu fosse incapaz de dizê-lo, mas, ao contrário, justamente porque talvez fosses demasiado capaz disso, não é mesmo? Como que de propósito, acontecia-me ser levado a fazê-lo justamente quando não tinha qualquer culpa, nem sequer em pensamento. Isso já era a pior vileza. E ao mesmo tempo eu ficava, no entanto, comovido até a alma, arrependia-me, vertia lágrimas e, naturalmente, ludibriava a mim mesmo, embora absolutamente não fingisse. Era o coração que praticava de certo modo uma torpeza... No caso, não se podia sequer culpar as leis da natureza, embora, realmente, as leis da natureza me ofendessem sempre e mais que tudo, a vida inteira. Faz mal lembrar tudo isto, e naquele tempo também fazia mal. Com efeito, ao cabo de um minuto, mais ou menos, já me acontecia perceber, enraivecido, que todos aqueles arrependimentos, todos aqueles estados comovidos, aquelas juras de regeneração, eram mentira, uma repugnante e afetada mentira. Mas perguntai: para que me mutilava e me atormentava assim? Resposta: porque era muito enfadonho ficar sentado de braços cruzados. Lançava-me, então, nas minhas escapatórias. Realmente era assim. Observai-vos melhor, senhores, e compreendereis que assim é. Imaginava, para mim mesmo, aventuras e inventava uma vida, para viver ao menos de algum modo. Quantas vezes me aconteceu, por exemplo, ficar ofendido não por um motivo determinado, mas intencionalmente! E eu mesmo sabia, por vezes, que me ofendera por nada, que aceitara voluntariamente a ofensa; mas essas coisas

VI §

Oh, se eu não fizesse nada unicamente por preguiça! Meu Deus, como eu me respeitaria então! Respeitar-me-ia justamente porque teria a capacidade de possuir em mim ao menos a preguiça; haveria, pelo menos, uma propriedade como que positiva, e da qual eu estaria certo. Pergunta: quem é? Resposta: um preguiçoso. Seria muito agradável ouvir isto a meu respeito. Significaria que fui definido positivamente; haveria o que dizer de mim. “Preguiçoso!” realmente é um título e uma nomeação, é uma carreira. Não brinqueis, é assim mesmo. Seria então, de direito, membro do primeiro dos clubes, e ocupar-me-ia apenas em me respeitar incessantemente. Conheci um cavalheiro que, a vida inteira, orgulhava-se com o fato de ser entendido em LaffiĴe (O vinho francês Château-LaffiĴe. (N. do T.)). Ele considerava isso sua qualidade positiva e nunca duvidava de si. Morreu com a consciência não só tranquila, mas triunfante até, e tinha toda a razão. E eu poderia, neste caso, escolher uma carreira para mim: seria preguiçoso e comilão, não do tipo comum, mas, por exemplo, dos que comungam com tudo o que é belo e sublime. Que tal? Há muito que isto me vem à mente. Este “belo e sublime” apertou-me com força a base do crânio aos quarenta anos; sim, foi aos quarenta, mas agora, oh, agora seria diferente! Imediatamente eu encontraria também o setor correspondente de atividade, ou, para ser mais exato: beber à saúde de tudo o que é belo e sublime. Eu me agarraria a toda oportunidade para, em primeiro lugar, verter uma lágrima na minha taça e, a seguir, esvaziá-la em intenção de tudo o que fosse belo e sublime; haveria de encontrar este belo e sublime até na mais ignóbil, na mais indiscutível das porcarias, e transformaria em belo e sublime tudo o que existisse no mundo. Tornar-me-ia lacrimejante

VII §

Mas tudo isto são sonhos dourados. Oh, dizei-me, quem foi o primeiro a declarar, a proclamar que o homem comete ignomínias unicamente por desconhecer os seus reais interesses, e que bastaria instruí-lo, abrir-lhe os olhos para os seus verdadeiros e normais interesses, para que ele imediatamente deixasse de cometer essas ignomínias e se tornasse, no mesmo instante, bondoso e nobre, porque, sendo instruído e compreendendo as suas reais vantagens, veria no bem o seu próprio interesse, e sabe-se que ninguém é capaz de agir conscientemente contra ele e, por conseguinte, por assim dizer, por necessidade, ele passaria a praticar o bem (Neste trecho, Dostoiévski faz polêmica com Tchernichévski. (N. do T.))? Oh, criancinha de peito! Oh, inocente e pura criatura! Mas, em primeiro lugar, quando foi que aconteceu ao homem, em todos estes milênios, agir unicamente em prol de sua própria vantagem? E que fazer então dos milhões de fatos que testemunham terem os homens, com conhecimento de causa, isto é, compreendendo plenamente as suas reais vantagens, relegado estas a um plano secundário e se atirado a um outro caminho, em busca do risco, ao acaso, sem serem obrigados a isto por nada e por ninguém, mas como que não desejando justamente o caminho indicado, e aberto a custo um outro, com teimosia, a seu bel-prazer, procurando quase nas trevas esse caminho árduo, absurdo? Quer dizer, realmente, que essa teimosia e a ação a seu bel-prazer lhes eram mais agradáveis que qualquer vantagem... A vantagem! Mas o que é a vantagem? Aceitais acaso a tarefa de determinar com absoluta precisão em que consiste a vantagem humana? E se porventura acontecer que a vantagem humana, alguma vez, não apenas pode, mas deve até consistir justamente em que, em certos casos, desejamos para nós mesmos o Buckle (1821-1862) no livro História da civilização na Inglaterra (1857-1861), cuja tradução russa, publicada em 1864-1866, foi muito popular entre a intelectualidade da época. (Nota de I. Z. Siérman para a edição soviética de 1956-1958.)). De acordo com a lógica, se não me engano, é a conclusão a que ele chega. Mas o homem é a tal ponto afeiçoado ao seu sistema e à dedução abstrata que está pronto a deturpar intencionalmente a verdade, a descrer de seus olhos e seus ouvidos apenas para justificar a sua lógica. Tomo justo este exemplo por ser tão eloquente. Lançai um olhar ao redor: o sangue jorra em torrentes e, o que é mais, de modo tão alegre como se fosse champanhe. Aí tendes todo o nosso século, em que viveu o próprio Buckle. Aí tendes Napoleão, tanto o grande como o atual (Napoleão III. (N. do T.)). Aí tendes a América do Norte, com a união eterna (Referência à Guerra de Secessão. (N. do T.)). Aí está, por fim, esse caricato Schleswig-Holstein (Trata-se da guerra de 1863-1864, em disputa dos ducados de Schleswig e Holstein, travada pela Áustria e a Prússia contra a Dinamarca. (N. do T.))... O que suaviza, pois, em nós a civilização? A civilização elabora no homem apenas a multiplicidade de sensações e... absolutamente nada mais. E, através do desenvolvimento dessa multiplicidade, o homem talvez chegue ao ponto de encontrar prazer em derramar sangue. Bem que isto já lhe aconteceu. Notastes acaso que os mais refinados sanguinários foram quase todos cavalheiros civilizados, diante dos quais todos estes Átilas e Stienka Rázin (Chefe de uma grande rebelião de cossacos no século XVII. (N. do T.)) não valem um caracol, e se eles não saltam aos olhos com a mesma nitidez de Átila e Stienka Rázin, é justamente porque são encontrados com demasiada frequência, são por demais comuns, e já não chamam a atenção. Pelo menos, se o homem não se tornou mais sanguinário com a civilização, ficou com certeza sanguinário de modo pior, mais ignóbil que antes. Outrora, ele via justiça no massacre e destruía, de consciência tranquila, quem julgasse necessário; hoje, embora consideremos o derramamento de

VIII §

— Ha, ha, ha! Mas essa vontade nem sequer existe, se quereis saber! — interrompeis-me com uma gargalhada. — A ciência conseguiu a tal ponto analisar anatomicamente o homem que já sabemos que a vontade e o chamado livre-arbítrio nada mais são do que... — Um momento, senhores, foi justamente assim que eu mesmo quis começar. Cheguei até a me assustar, confesso. Ainda agora, quis gritar que a vontade depende diabo sabe do quê, e que talvez se deva dar graças a Deus por isto, mas lembrei-me da ciência e... me detive. E nesse instante começastes a falar. E, com efeito, se realmente se encontrar um dia a fórmula de todas as nossas vontades e caprichos, isto é, do que eles dependem, por que leis precisamente acontecem, como se difundem, para onde anseiam dirigir-se neste ou naquele caso etc. etc., uma verdadeira fórmula matemática, então o homem será capaz de deixar de desejar, ou melhor, deixará de fazê-lo, com certeza. Ora, que prazer se pode ter em desejar segundo uma tabela? Mais ainda: no mesmo instante, o homem se transformará num pedal de órgão ou algo semelhante; pois, que é um homem sem desejos, sem vontades nem caprichos, senão um pedal de órgão? Que pensais disso? Calculemos as probabilidades: pode tal coisa acontecer ou não? — Hum... — retrucais. — As nossas vontades são, na maior parte, equívocos devidos a uma concepção errada sobre as nossas vantagens. Se queremos às vezes um absurdo completo, é porque vemos nesse absurdo, devido à nossa estupidez, o caminho mais fácil para atingir alguma vantagem previamente suposta. Bem mas quando tudo isto estiver explicado, calculado sobre uma folha de papel (o que é muito possível, porquanto é de fato ignóbil, e não tem

IX §

Naturalmente, estou gracejando, senhores, e eu mesmo sei que o faço de modo inábil, mas não se pode também tomar tudo por um gracejo. É possível que eu graceje rangendo os dentes. Senhores, os problemas me atormentam; resolvei-os para mim. Quereis, por exemplo, desacostumar uma pessoa dos seus velhos hábitos e corrigir-lhe a vontade, de acordo com as exigências da ciência e do bom senso. Mas como sabeis que o homem não apenas pode, mas deve ser assim transformado? De onde concluís que à vontade humana é tão indispensavelmente necessário corrigir-se? Numa palavra, como sabeis que uma tal correção realmente trará vantagem ao homem? E, se é para dizer tudo, por que estais tão certamente convictos de que não ir contra as vantagens reais, normais, asseguradas pelas conclusões da razão e pela aritmética, é de fato sempre vantajoso para o homem e constitui uma lei para toda a humanidade? Mas, por enquanto, isso é apenas uma suposição vossa. Admitamos que seja uma lei lógica, mas talvez não o seja, de modo algum, da humanidade. Talvez penseis, senhores, que estou louco? Permiti-me emendar o que disse. Concordo: o homem é um animal criador por excelência, condenado a tender conscientemente para um objetivo e a ocupar-se da arte da engenharia, isto é, abrir para si mesmo um caminho, eterna e incessantemente, para onde quer que seja. Mas talvez precisamente por isto lhe venha às vezes uma vontade de se desviar, justamente por estar condenado a abrir esse caminho, e talvez ainda porque, por mais estúpido que seja um homem direto e de ação, ocorre-lhe às vezes que o caminho vai quase sempre para alguma parte, e que o principal não está em saber para onde se dirige, mas simplesmente em que se dirija, e em que a criança comportada, desprezando a arte da engenharia, não se

X §

Acreditais no palácio de cristal indestrutível através dos séculos, isto é, um edifício tal que não se lhe poderá mostrar a língua, às escondidas, nem fazer figa dentro do bolso. Bem, mas talvez eu tema este edifício justamente porque é de cristal e indestrutível através dos séculos e por não se poder mostrar-lhe a língua, nem mesmo às ocultas. Pensai no seguinte: se, em lugar do palácio, existir um galinheiro, e se começar a chover, talvez eu trepe no galinheiro, a fim de não me molhar; mas, assim mesmo, não tomarei o galinheiro por um palácio, por gratidão, pelo fato de me ter protegido da chuva. Estais rindo, dizeis até que, neste caso, galinheiro e palácio são a mesma coisa. Sim, respondo, se fosse preciso viver unicamente para não me molhar. Mas que fazer, se eu próprio meti na cabeça que não é apenas para isto que se vive e que, se se trata de viver, deve-se fazê-lo num palácio? É a minha vontade, o meu desejo. Somente o podereis desarraigar de dentro de mim quando transformardes os meus desejos. Bem, modificai-os, seduzi-me com algo diverso, dai-me outro ideal. Mas, por enquanto, não tomarei o galinheiro por um palácio. Suponhamos que o edifício de cristal seja uma invencionice e que, pelas leis da natureza, não se admita a sua existência, que eu o tenha inventado unicamente em virtude da minha própria estupidez e de alguns hábitos antigos, irracionais, da nossa geração. Mas que tenho eu com o fato de que não se admita a sua existência? Não dá no mesmo, se ele existe nos meus desejos ou, melhor dizendo, se existe enquanto existem os meus desejos? Estais rindo de novo, talvez. Podeis rir, aceitarei todas as zombarias. Apesar de tudo, não direi estar saciado quando tenho fome; apesar de tudo, sei que não

XI §

O fim dos fins, meus senhores: o melhor é não fazer nada! O melhor é a inércia consciente! Pois bem, viva o subsolo! Embora eu tenha dito realmente que invejo o homem normal até a derradeira gota da minha bílis, não quero ser ele, nas condições em que o vejo (embora não cesse de invejá-lo. Não, não, em todo caso, o subsolo é mais vantajoso!) Ali, pelo menos, se pode... Eh! mas estou mentindo agora também. Minto porque eu mesmo sei, como dois e dois, que o melhor não é o subsolo, mas algo diverso, absolutamente diverso, pelo qual anseio, mas que de modo nenhum hei de encontrar! Ao diabo o subsolo! Eis o que seria melhor mesmo: que eu próprio acreditasse, um pouco que fosse, no que acabo de escrever. Juro-vos, meus senhores, que não creio numa só palavrinha de tudo quanto rabisquei aqui! Isto é, talvez eu creia, mas, ao mesmo tempo, sem saber por quê, sinto e suspeito estar mentindo como um desalmado (No original, literalmente: “como um sapateiro”. (N. do T.)). — Mas para que foi então que escreveu tudo isto? — dizeis- me. — E o que aconteceria se eu vos deixasse por uns quarenta anos sem qualquer ocupação e, passado esse tempo, fosse à vossa casa, ao subsolo, para me informar a que ponto chegastes? Pode-se acaso deixar um homem durante quarenta anos sozinho, sem uma tarefa? — Mas não é uma vergonha, não é uma humilhação?! — talvez me digais, balançando com desdém a cabeça. — Está ansiando pela vida, mas resolve os problemas da existência com um emaranhado lógico. E como são importunas, como são insolentes as suas saídas, e, ao mesmo tempo, como o senhor tem medo! Afirma Existem nas recordações de todo homem coisas que ele só revela aos seus amigos. Há outras que não revela mesmo aos amigos, mas apenas a si próprio, e assim mesmo em segredo. Mas também há, finalmente, coisas que o homem tem medo de desvendar até a si próprio, e, em cada homem honesto, acumula-se um número bastante considerável de coisas no gênero. E acontece até o seguinte: quanto mais honesto é o homem, mais coisas assim ele possui. Pelo menos, eu mesmo só recentemente me decidi a lembrar as minhas aventuras passadas, e, até hoje, sempre as contornei com alguma inquietação. Mas agora, que não apenas lembro, mas até mesmo resolvi anotar, agora quero justamente verificar: é possível ser absolutamente franco, pelo menos consigo mesmo, e não temer a verdade integral? Observarei a propósito: Heine afirma que uma autobiografia exata é quase impossível, e que uma pessoa falando de si mesma certamente há de mentir. Na sua opinião, Rousseau, por exemplo, com toda certeza, mentiu a respeito de si mesmo, na sua confissão, e fê-lo intencionalmente, por vaidade. Estou certo de que Heine tem razão; compreendo muito bem que se possa às vezes, apenas por vaidade, até urdir crimes a respeito de si mesmo, e percebo muito bem de que tipo de vaidade pode ser. Mas Heine estava emitindo juízo sobre um homem que fazia sua confissão em público, e eu escrevo unicamente para mim, e declaro de uma vez por todas e, embora escreva como se me dirigisse a leitores, faço-o apenas por exibição, pois assim me é mais fácil escrever. Trata-se de forma, unicamente de forma vazia, e eu nunca hei de ter leitores. Já declarei isto uma vez... Não quero constranger-me a nada na redação das minhas memórias. Não instaurei nelas uma ordem nem um sistema. Anotarei tudo o que me vier à lembrança. Bem, por exemplo, alguém poderia implicar com essas palavras e me perguntar: se de fato não conta com leitores, para que faz tais contratos consigo mesmo, e ainda por escrito, no sentido de Quando da treva dos enganos Meu verbo cálido e amigo Ergueu a tua alma caída, E, plena de profunda mágoa, Amaldiçoaste, de mãos jutas, O vício que te envolvera; Quando açoitaste com a lembrança A consciência que olvida, E me fizeste o relato De tudo o que houve antes de mim, E, de repente, o rosto oculto, Repleta de vergonha e horror, Tudo desabafaste: um pranto De indignação, de comoção... (de um poema de N. A. Niekrassov) (Este poema de N. A. Niekrassov (1821-1878) era muito popular nos meios democráticos da época. (N. do T.)) Naquele tempo, eu tinha apenas vinte e quatro anos. Minha vida era, mesmo então, desordenada e sombria até a selvageria. Não me dava com ninguém, evitava até conversar, e cada vez mais me encolhia em meu canto. No emprego, na repartição, forçava-me a não olhar para ninguém; mas notei muito bem que os meus colegas não só me consideravam um tipo original, como até — tinha esta impressão continuamente — pareciam olhar-me com certa aversão. Vinha-me à mente: por que ninguém, além de mim, sente ser olhado com aversão? Um dos meus colegas tinha um rosto repulsivo ao extremo, todo picado de varíola, com certa expressão de bandido até. Eu, segundo creio, não ousaria sequer olhar para alguém se meu rosto fosse tão indecente. Um outro tinha o uniforme (Os funcionários russos da época eram obrigados ao uso do uniforme. (N. do T.)) a tal ponto usado que perto dele já se sentia mau cheiro. No entanto, nenhum desses senhores ficava confuso, quer por causa do traje, quer do rosto, ou por algum escrúpulo moral. Um e outro não imaginavam sequer serem olhados com asco; e, mesmo que imaginassem, pouco se incomodariam, contanto que os chefes não se lembrassem de os olhar. Atualmente percebo, com toda a nitidez, que eu mesmo, em virtude da minha ilimitada vaidade e, por conseguinte, da exigência em relação a mim mesmo, olhava-me com muita frequência, com enfurecida insatisfação que chegava à repugnância e, por isso, atribuía mentalmente a cada um o meu próprio olhar. Detestava, por exemplo, o meu rosto, considerava-o abominável, e supunha até haver nele certa expressão vil; por isso, cada vez que ia à repartição, torturava-me, procurando manter-me do modo mais independente possível, para que não suspeitassem em mim a ignomínia e para expressar no semblante o máximo de Nós, os russos, falando de modo geral, nunca tivemos os estúpidos românticos supraestelares alemães e sobretudo franceses, sobre os quais nada atua, mesmo que a terra se fenda a seus pés, mesmo que a França toda pereça nas barricadas: permanecem os mesmos, não se alteram nem sequer por uma questão de decência, e não cessam de entoar suas canções supraestelares, no sepulcro da sua vida, por assim dizer, porque são imbecis. E na terra russa não existem imbecis, isto é notório; é nisso que nos distinguimos de todas as demais terras alemãs (Em linguagem popular, dizia-se “alemão” tudo o que procedia do Ocidente. (N. do T.)). Consequentemente, não existem em nosso meio criaturas supraestelares, em sua condição pura. Foram os nossos publicistas e críticos “positivos” de então que, ocupados em caçar os Kostanjoglos e os tios Piotr Ivânovitch (Kostanjoglo é personagem da segunda parte de Almas mortas de Gógol; e Piotr Ivânovitch, de Uma história comum de Gontcharóv. (N. do T.)), e tendo-os tomado, por tolice, pelo nosso ideal, apresentaram invencionices sobre os nossos românticos, considerando-os tão supraestelares como os da Alemanha ou de França. Ao contrário, as características do nosso romântico são absoluta e diretamente opostas às do europeu supraestelar, e nenhuma medidazinha europeia é adequada no caso. (Permitam-me usar esta palavra: “romântico”, é uma palavrinha antiga, respeitável, com algum merecimento, e de todos conhecida.) As características do nosso romântico são: tudo compreender, tudo ver e vê-lo muitas vezes, de modo incomparavelmente mais nítido do que o fazem todas as nossas inteligências mais positivas; não se conformar com nada e com ninguém, mas, ao mesmo tempo, não desdenhar nada; tudo contornar, ceder a tudo, agir com todos diplomaticamente; nunca perder de vista o objetivo útil, prático (não sei que apartamentinhos governamentais, pensõezinhas, comendazinhas), e olhar este objetivo através de todos os entusiasmos e volumezinhos de versinhos líricos e, ao mesmo Logo de início, um oficial teve um atrito comigo. Eu estava em pé junto à mesa de bilhar, estorvava a passagem por inadvertência, e ele precisou passar; tomou-me então pelos ombros e, silenciosamente, sem qualquer aviso prévio ou explicação, tirou-me do lugar em que estava, colocou-me em outro e passou por ali, como se nem sequer me notasse. Até pancadas eu teria perdoado, mas de modo nenhum poderia perdoar que ele me mudasse de lugar e, positivamente, não me notasse. O diabo sabe o que não daria eu, naquela ocasião, por uma briga de verdade, mais correta, mais decente, mais — como dizer? literária! Fui tratado como uma mosca. Aquele oficial era bem alto, e eu sou um homem baixinho, fraco. A briga, aliás, estava em minhas mãos: bastava protestar e, naturalmente, seria posto janela afora. Mas eu mudei de opinião e preferi... apagar-me, enraivecido. Saí da taverna, perturbado e confuso, e fui diretamente para casa; no dia seguinte, prossegui em minha devassidãozinha, ainda com maior timidez, de modo ainda mais opresso e triste, como se tivesse lágrimas nos olhos, mas, assim mesmo, prossegui. Não penseis, aliás, que me tenha intimidado frente ao oficial por covardia: nunca fui covarde de espírito, embora incessantemente me acovardasse de fato, mas esperem com este riso, há explicação para isto; tenho uma explicação para tudo, eu vos asseguro. Oh, se aquele oficial fosse dos que concordam em lutar num duelo! Mas não, era exatamente dos tais cavalheiros (ai, há muito desaparecidos!) que preferiam agir com tacos de bilhar ou, a exemplo do tenente Pirogóv, de Gógol, com o apoio das autoridades (No conto “A Avenida Niévski” de Gógol, o Tenente Pirogóv, depois de espancado, quis queixar-se às autoridades. (N. do T.)). E que não lutavam em duelos, ou, em todo caso, considerariam indecente um duelo com a nossa gente, com a paisanada. De modo geral, achavam o duelo algo inconcebível, francês, coisa de livres-pensadores, e, ao Voltei para casa vingado de tudo. Meu estado era de arrebatamento. Triunfara, e ia cantando árias italianas. Está claro que não vos descreverei o que me sucedeu três dias mais tarde; se lestes o meu primeiro capítulo, “O subsolo”, podeis adivinhar sozinhos. O oficial foi depois transferido não sei para onde, já faz uns quatorze anos que não o vejo. Por onde andará agora o meu caro amigo? Em quem estará pisando?

II §

Chegava, porém, ao fim a fase da minha devassidãozinha, e eu começava a ter náuseas terríveis. Assaltava-me o arrependimento, mas eu o repelia: era por demais nauseante. Todavia, também a isso me acostumei, pouco a pouco. Acostumava-me, ou melhor, não é que me acostumasse, mas de certo modo concordava voluntariamente em suportar tudo. Mas eu tinha uma solução apaziguadora: era refugiar-me no que fosse “belo e sublime”, em devaneios, é claro. Devaneava terrivelmente, três meses seguidos, encolhido no meu canto, e — crede — nesses momentos eu não me parecia com o cavalheiro que, na confusão do seu coração de galináceo, pregava à gola do capote uma pele alemã de castor. Tornava-me de repente herói. Não receberia sequer de visita aquele meu tenente de dez vierchokes. Nem sequer podia imaginá-lo então. É difícil dizer agora em que consistiam os meus devaneios e como pude contentar-me com eles, mas o certo é que me contentei. Aliás, mesmo agora, em parte me contento com isto. Os devaneios vinham- me com particular doçura e intensidade após a devassidãozinha, vinham com arrependimento e lágrimas, com maldições e êxtases. Eu tinha momentos de tão positiva embriaguez, de felicidade tal, que, juro por Deus, não havia em mim a menor zombaria. O que havia era fé, esperança, caridade. Aí é que está: eu acreditava então cegamente que, por um milagre qualquer, por alguma circunstância exterior, tudo se abriria e alargaria num átimo e, num átimo também, surgiria o horizonte da correspondente atividade, benfazeja, bela e, principalmente, de todo acabada (nunca soube qual seria exatamente essa atividade, mas, sobretudo, era absolutamente acabada), e eu sairia de súbito para o mundo de Deus como que montando um cavalo branco e cingido por uma coroa de

III §

Encontrei ali mais dois colegas de escola. Pareciam tratar de um caso importante. Nenhum deles notou a minha chegada, o que era estranho até, pois fazia anos que não nos víamos. Provavelmente, consideravam-me algo semelhante à mais ordinária das moscas. Nem mesmo na escola me haviam tratado daquele modo, embora todos me odiassem lá. Compreendia, naturalmente, que deviam desprezar-me pelo fracasso da minha carreira de funcionário e pelo fato de eu ter decaído muito, de andar mal trajado etc., o que, aos seus olhos, era um sinal evidente da minha incapacidade e insignificância. Mas apesar de tudo eu não esperava um desprezo tão imenso. Símonov ficou até surpreendido com a minha entrada. Também antes já parecia surpreender-se com minhas visitas. Tudo aquilo me deixou intrigado; sentei-me, preso de certa angústia, e me pus a ouvir o que diziam. Estava em curso uma conversa séria e até animada sobre o jantar de despedida que aqueles cavalheiros pretendiam organizar para o dia seguinte, em homenagem ao amigo deles, Zvierkóv (Sobrenome derivado de zvier (fera). (N. do T.)), que era oficial e estava de partida para uma província distante. Monsieur Zvierkóv fora também meu colega de escola durante todo o curso. Eu passara a odiá-lo, particularmente, quando cursávamos os últimos anos. Nos primeiros, fora apenas um menino bonitinho, vivo, de quem todos gostavam. Aliás, eu o odiara nos primeiros anos também, exatamente pelo fato de ser ele bonitinho e vivo. Zvierkóv sempre se saíra mal na escola e fora piorando à medida que avançava no curso; no entanto, concluiu-o com êxito, porque dispunha de proteção. No seu último ano de escola, recebeu uma herança de duzentas almas (Na antiga Rússia, os servos eram designados por “almas”. (N. do Abrasei-me, mas, abrasando-me, lembrei-me de que de longa data devia a Símonov quinze rublos, o que nunca esquecera, é verdade, conquanto isto não me tivesse levado a devolver-lhe o dinheiro. — Convenha comigo, Símonov, que eu não podia saber, ao vir aqui... Sinto muito ter esquecido... — Está bem, está bem, tanto faz. Vai pagar amanhã, durante o jantar. Eu disse apenas para se saber... Por favor... Interrompeu-se bruscamente e se pôs a caminhar pela sala, ainda mais despeitado. Parava de vez em quando e batia o pé com força. — Não o atrapalho? — perguntei, depois de uns dois minutos de silêncio. — Oh, não! — Estremeceu de repente. — Isto é, na verdade, sim. Sabe? Eu ainda preciso passar... É aqui perto... — acrescentou como que se desculpando e, em parte, envergonhado. — Ah, meu Deus! Por que não me disse?! — exclamei, apanhando o boné, com uma expressão surpreendentemente desembaraçada, que me surgira Deus sabe como. — Mas não é longe daqui... A dois passos... — repetia Símonov, acompanhando-me até a antessala, com um ar agitado que não lhe ia bem. — Então, amanhã, às cinco em ponto! — gritou-me para a escada: estava de fato muito contente porque eu ia embora. Quanto a mim, ficara furioso. Para que precisava, para que precisava eu desta saída?, rangia os dentes, caminhando pela rua. E a um canalha destes, a um porquinho, ao Zvierkóv! Está claro que não devo ir; está claro que devo cuspir para tudo isto. Alguém me obriga? Amanhã mesmo informarei Símonov pelo correio... E havia até um pretexto ponderável para não ir: estava sem dinheiro. Ao todo, tinha nove rublos guardados. Mas, destes, era

IV §

Já na véspera, eu sabia que seria o primeiro a chegar. Mas não se tratava mais de ser o primeiro. Não só não chegara nenhum deles, mas até mal pude achar o nosso reservado. A mesa ainda não estava completamente arrumada. O que significaria aquilo? Depois de muito interrogatório, consegui saber finalmente, por meio dos criados, que o jantar estava encomendado para as seis horas e não cinco. Isto me foi confirmado também no bufê. Fiquei até envergonhado de perguntar. Eram apenas cinco e vinte e cinco. Se tinham transferido a hora, deveriam de qualquer modo avisar-me — para isto existe o correio municipal — e não me submeter a uma “vergonha” daquelas perante mim mesmo e... e até perante os garçons. Sentei-me; um garçom começou a arrumar a mesa; na presença dele, tudo se tornava de certo modo ainda mais doloroso. Pouco antes das seis, foram trazidas velas para o reservado, além dos lampiões que já havia ali. No entanto, aquele garçom não se lembrara de trazê-las quando eu chegara. No reservado contíguo estavam jantando, em mesas diferentes, dois clientes taciturnos que permaneciam silenciosos e pareciam zangados. Numa das salas afastadas havia muito barulho; gritava-se até; ouviam-se gargalhadas de todo um bando de pessoas; ressoavam alguns deselegantes ganidos franceses: tratava-se de um jantar em companhia de senhoras. Numa palavra, era nauseante ao extremo. Raramente eu tinha passado instantes tão desagradáveis, de modo que, às seis em ponto, quando eles apareceram todos juntos, eu, no primeiro momento, alegrei-me com a sua presença, como se fossem não sei que espécie de libertadores, e quase esqueci que devia parecer ofendido. Zvierkóv entrou na frente do grupo, evidentemente como chefe. Tanto ele como os demais estavam rindo, mas, vendo-me, empertigou-se, acercou-se de mim sem se apressar, inclinou um pouco o busto com alguma faceirice e me deu a mão, carinhosamente; não muito, mas com certa delicadeza cautelosa, quase de general, como se, dando-me a mão, ele se protegesse de algo. Eu imaginara que, ao contrário, mal entrasse, ele soltaria a mesma gargalhada de outrora, muito aguda, acompanhada de sons esganiçados, e que, logo às primeiras palavras, se ouviriam as suas brincadeiras e gracejos de mau gosto. Eu estava preparado para isso desde a noite anterior, mas, de modo nenhum esperava um tom tão condescendente, tão altamente carinhoso. Considerava-se ele, portanto, imensuravelmente superior a mim, em todos os sentidos? Se apenas quisera ofender-me com aquelas maneiras de general, não tinha importância, pensava eu; de qualquer modo, eu poderia, ainda, cuspir para o lado. Mas que fazer se, realmente, sem qualquer desejo de me ofender, se tivesse esgueirado seriamente para dentro de sua cabeçorra de carneiro a ideiazinha de que ele era imensuravelmente superior a mim e não podia olhar-me de outro modo, a não ser com ares protetores? Só de pensar nisso comecei a sufocar. — Fiquei surpreendido ao saber do seu desejo de participar do nosso jantar — começou ele, ciciando, sibilando e arrastando as palavras, o que não fazia outrora. — Nunca mais tivemos ocasião de nos encontrar. Você como que se afasta. Não devia fazer isso. Não somos tão terríveis como lhe parecemos. Bem, em todo caso, estou contente de re-i-ni-ci-ar... E, com ar displicente, virou-se, para colocar o chapéu no parapeito da janela. — Faz tempo que está esperando? — perguntou Trudoliubov. — Cheguei às cinco em ponto, conforme ficou marcado ontem — respondi em voz alta e com uma irritação que prometia Todos se sentaram; sentei-me também. A mesa era redonda. Trudoliubov ficava à minha esquerda, Símonov à direita. Zvierkóv sentou-se em frente; Fierfítchkin a seu lado, entre ele e Trudoliubov. — Di-i-ga-me, você... trabalha num departamento? — disse Zvierkóv, que continuava a ocupar-se de mim. Vendo a minha confusão, imaginara seriamente que era preciso acarinhar-me e, por assim dizer, animar. “Será que quer que eu atire nele uma garrafa vazia?”, pensei furioso. Por falta de hábito, irritava-me de certo modo fácil e descabidamente. — Na repartição de... — respondi, com voz sofreada, olhando para dentro do prato. — E... isto é vantajoso para você? Di-i-ga-me: o que foi que o obri-i-gou a deixar o emprego anterior? — O que me obri-i-gou foi justamente que eu quis deixar aquele emprego — arrastei eu, três vezes mais longamente. quase não me dominando mais. Fierfítchkin fungou. Símonov olhou-me com ironia; Trudoliubov parou de comer e se pôs a examinar-me com curiosidade. Zvierkóv ficou chocado, mas fez que não percebeu. — Be-e-em, e quanto à sua manutenção? — Que manutenção? — Quero dizer, o o-ordenado? — Mas, está me arguindo? Por quê? Aliás, no mesmo instante, eu disse quanto ganhava. Estava ficando terrivelmente vermelho. — Não é muito — observou Zvierkóv com superioridade. — Sim, não dá para jantar em cafés e restaurantes — acrescentou com impertinência Fierfítchkin. — A meu ver, é simplesmente uma miséria — observou Trudoliubov, sério. E então começou certa pasquinada sobre como aquele cavalheiro quase se casara três dias antes. Aliás, não disse palavra sobre o casamento em si, mas em seu relato apareciam a todo momento generais, coronéis e, mesmo, camer-iúnkeres (Cargo áulico, junto à corte imperial russa, e que era imediatamente inferior ao de camerguier (este correspondia aproximadamente ao de gentil- homem da Câmara Real). (N. do T.)), e Zvierkóv quase à testa deles. Começou um riso aprobatório; Fierfítchkin soltava até gritinhos esganiçados. Todos me abandonaram, eu estava esmagado, destruído. “Meu Deus, será isto companhia para mim?!”, pensava. “E que imbecil me mostrei diante deles! Permiti que Fierfítchkin me ofendesse demais. Os cretinos estão pensando que me fizeram uma honra dando-me um lugar à mesa, mas não compreendem que eu é que lhes concedo essa honra! Emagreceu! A roupa! Oh, malditas calças! Ainda há pouco, Zvierkóv notou a mancha amarela sobre o joelho... Mas, que esperar?! Devo levanta-me da mesa, agora mesmo, apanhar o chapéu e ir embora, simplesmente, sem dizer palavra... Por desprezo! E amanhã nem que seja preciso um duelo. Canalhas. Não são os sete rublos. Diabo! Não lamento sete rublos. Vou-me embora neste instante!...” Fiquei, naturalmente. De desgosto, bebia LaffiĴe e xerez aos copos. Por falta de hábito, estava-me embriagando depressa, e, com a embriaguez, crescia-me também o despeito. De repente, tive vontade de ofendê- los do modo mais atrevido e, depois, ir embora. Aproveitar o momento e mostrar quem sou; que digam: “É ridículo, mas inteligente...”. E... e... numa palavra, diabo que os carregue! Examinei-os todos com insolência, os olhos enevoados. Pareciam ter-me esquecido de todo. O ambiente deles estava barulhento, gritante, alegre. Era sempre Zvierkóv quem falava. Prestei atenção. Zvierkóv falava de certa magnífica senhora que ele Eu sorria com desdém e fiquei andando do outro lado da sala, ao longo da parede, bem em frente ao divã, fazendo o percurso da mesa à lareira e vice-versa. Queria mostrar, com todas as minhas forças, que podia passar sem eles; no entanto, batia, de propósito, com as botas no chão, apoiando-me nos saltos. Mas tudo em vão. Eles não me dispensavam absolutamente qualquer atenção. Tive a pachorra de ficar andando assim, bem diante deles, das oito às onze, sempre no mesmo lugar, da mesa à lareira e da lareira de volta à mesa. “Estou andando assim, e ninguém me pode proibir de fazer isso.” O garçom que entrava na sala deteve-se algumas vezes para me olhar; girava-me a cabeça, por causa das viradas frequentes; por instantes, tinha a impressão de estar delirando. Nessas três horas, três vezes fiquei suado e três vezes tornei a ficar enxuto. De quando em quando cravava-se em mim, com dor profunda, venenosa, um pensamento: passariam dez, vinte, quarenta anos, e eu, mesmo decorridos quarenta anos, haveria de lembrar com humilhação e repugnância estes momentos, os mais imundos, ridículos e terríveis de toda a minha vida. Era impossível rebaixar-me de modo mais desonesto e deliberado. Eu compreendia isto perfeitamente, mas assim mesmo continuava a caminhar da mesa à lareira e vice-versa. “Oh, se ao menos soubessem de que sentimentos e ideias sou capaz e como sou culto!”, pensava por instantes, dirigindo-me, mentalmente, ao divã, onde estavam sentados os meus inimigos. Mas os meus inimigos comportavam-se como se eu nem estivesse na sala. Uma vez, uma única vez, voltaram-se na minha direção, justamente quando Zvierkóv se pôs a falar de Shakespeare, e eu soltei de repente, com desprezo, uma gargalhada. Fi-lo de modo tão falso e feio que eles interromperam simultaneamente a conversa e puseram-se a observar em silêncio, durante uns dois minutos, sérios, sem rir, a minha caminhada ao longo da parede, da mesa à lareira, e como eu não lhes prestava nenhuma atenção. Mas nada resultou

V §

“Aí está, aí está finalmente o choque com a realidade”, balbuciava eu, precipitando-me escada abaixo. “Isto, naturalmente, não é mais o papa que deixa Roma e parte para o Brasil; não é mais o baile junto ao lago de Como!” “És um canalha”, passou-me pela mente, “se estás rindo disso agora!”. “Seja!”, gritei, respondendo a mim mesmo. “Agora tudo já levou a breca!” Não havia sinal deles sequer; mas era o mesmo: eu sabia aonde tinham ido. Junto à entrada, estava parado um cocheiro noturno, solitário, com traje aldeão, todo polvilhado do neve molhada, que não cessava de cair e que parecia quente. O ar estava abafado, fazia suar. O cavalinho pequeno, guedelhudo, malhado, também estava polvilhado de neve e tossia; lembro-me disso muito bem. Atirei-me ao trenó de madeira; mal levantei, porém, a perna para me sentar, a lembrança de como, havia pouco, Símonov me dera seis rublos pareceu ceifar-me de vez, e me deixei cair no trenó como um fardo. — Não! É preciso fazer muito para resgatar tudo isto! — exclamei. — Mas eu hei de resgatar ou, nesta mesma noite, morrerei fulminado. Anda! Partimos. Havia todo um turbilhão na minha cabeça. “Eles não vão implorar a minha amizade de joelhos. É miragem, uma miragem vulgar, repugnante, romântica e fantástica; é sempre o mesmo baile à beira do lago de Como. E por isto devo esbofetear Zvierkóv! Sou obrigado a isto. Portanto, está resolvido; estou voando para lhe dar o bofetão. Mais depressa!” O cocheiro sacudiu as rédeas. ... Alhures, atrás de um tabique, como que submetido a uma forte pressão, ou como alguém que estivesse sendo esganado, rouquejou um relógio. Depois de um rouquejar prolongado e pouco natural, houve um bater fininho, feinho e surpreendentemente rápido: era como se alguém tivesse saltado para a frente. Bateram as duas. Voltei a mim, embora não estivesse dormindo, mas apenas deitado em modorra. O quarto estreito, apertado e baixo, atravancado por um enorme guarda-roupa e repleto de caixas de papelão, trapos e toda espécie de retalhos, estava quase às escuras. O toco de vela que ardia sobre a mesa, na outra extremidade do quarto, já se extinguia e, de quando em quando, a chama estremecia ligeiramente. Alguns instantes depois, seria a treva completa. Dei acordo de mim rapidamente; sem esforço, lembrei-me de tudo no mesmo instante, como se as recordações tivessem estado à minha espreita para se atirar novamente sobre mim. E, mesmo em meu alheamento, algo persistiu em mim, uma espécie de ponto que eu não conseguia esquecer e em torno do qual os meus sonhos giravam pesadamente. Mas era estranho: tudo o que me acontecera naquele dia parecia-me agora, ao acordar, ter ocorrido há muito tempo, como coisa já vivida por mim muitos anos antes. Tinha uma fumaceira na cabeça. Algo parecia pairar sobre mim, tocar-me, excitar-me, infundir-me intranquilidade. A angústia e a bílis ferviam novamente e buscavam saída. De repente vi, a meu lado, dois olhos abertos que me examinavam curiosa e fixamente. O olhar era frio, indiferente, taciturno, muito estranho; dava uma sensação penosa. Um pensamento sombrio nasceu-me no cérebro e passou-me por todo o corpo, sob a forma de certa sensação desagradável, semelhante à que se tem ao entrar num subterrâneo úmido e abafado. Era, de certo modo, pouco natural que, justamente, apenas naquele momento, aqueles dois olhos tivessem decidido começar a examinar-me. Lembrei-me também de que, no decorrer de duas horas, eu não trocara uma palavra sequer com aquela criatura e de que não considerara isto de modo algum necessário; pouco antes a coisa me parecia até, por algum motivo, agradável. Agora, porém, surgira-me de repente com vivacidade a ideia absurda, repugnante como uma aranha, da devassidão que, sem amor, grosseira e desavergonhadamente, começa direto por aquilo com que o amor é coroado. Passamos assim muito tempo a olhar um para o outro; ela, todavia, não baixava os olhos diante dos meus nem seu olhar mudava de expressão e, por fim, tive, não sei por quê, um sentimento de pavor. — Como se chama? — perguntei lacônico, procurando acabar o quanto antes com aquilo. — Liza — respondeu quase num sussurro, mas de modo nada cordial e afastando o olhar. Passei algum tempo calado. — O tempo hoje... neva... está feio! — disse eu quase para mim mesmo, pondo com expressão angustiada a mão sob a nuca e olhando o teto. Não respondeu. Tudo aquilo era monstruoso. — Você é daqui? — perguntei um instante depois, quase fora de mim, voltando ligeiramente a cabeça na sua direção. — Não. — De onde? — De Riga — respondeu, contrafeita. — Alemã? — Russa. Esta observação espicaçou-me dolorosamente. Não era o que eu esperava. Não compreendi sequer que ela se mascarava, de propósito, com aquela zombaria, que era o último ardil das pessoas envergonhadas e de coração virtuoso, quando alguém lhes procura penetrar a alma, de modo rude e insistente, e que, até o último instante, não se rendem por orgulho e temem expressar o seu sentimento diante de outrem. Já pela timidez com que ela tentara várias vezes expressar a sua zombaria, e com que, por fim, mal se decidira a enunciá-la, eu devia ter adivinhado. Mas não adivinhei, e um mau sentimento se apossou de mim “Espere um pouco”, pensei.

VII §

— Eh, chega, Liza, que história de livro é esta, se eu mesmo me sinto mal, me sinto um estranho? E não só como um estranho. Tudo isto me despertou agora no íntimo... Será possível, será possível que você mesma não se sinta mal aqui? Não, o hábito pelo visto significa muito! O diabo é que sabe o que o hábito pode fazer de uma pessoa. Será que você pensa seriamente que nunca há de envelhecer, que será sempre bonita, e que eles vão mantê-la aqui eternamente? Além do mais, mesmo isto é uma imundice... Mas ouça o que vou lhe dizer sobre a sua vida atual: você é moça, gentil, bonita, tem alma, tem sentimento; mas sabe que ao dar acordo de mim, ainda há pouco, me senti mal por estar com você aqui?! Só mesmo embriagado é que se pode vir parar nesta casa. E se você estivesse num outro lugar, vivendo com as pessoas direitas, não é que eu fosse arrastar a asa a você, mas simplesmente me apaixonaria; ficaria contente com um único olhar seu, quanto mais com uma palavra; iria esperá-la no portão, ajoelhar-me a seus pés, olhá-la como minha noiva e ainda consideraria isto uma honra. Não ousaria ter sequer um pensamento impuro a seu respeito. E aqui sei que me basta dar um assobio, e você, queira ou não, terá de me seguir, e não serei eu que perguntarei a sua vontade, mas você a minha. O último dos mujiques, quando faz um contrato de trabalho, não se entrega, apesar de tudo, totalmente, e além disso, sabe que tem um prazo. E você, qual é o prazo? Pense um pouco: o que entrega você aqui? O que empenha? Com o corpo, está empenhando a alma, a alma que não lhe pertence! Está entregando ao primeiro bêbado o seu amor, para que o profane! O amor! Mas isto é tudo, é um diamante, um tesouro virginal, o amor! Para merecer este amor, alguns estão prontos a entregar a alma, a enfrentar a morte. E que

VIII §

Aliás, não foi de imediato que concordei em reconhecer essa verdade. Acordando, de manhã, após algumas horas de um sono profundo, de chumbo, e relembrando, no mesmo instante, tudo o que se passara na véspera, cheguei até a surpreender-me com o meu sentimentalismo em relação a Liza, com todos aqueles “horrores e compaixões de ontem”. “Um belo dia a gente sofre um desses abalos femininos dos nervos, irra!”, decidi. “E para que fui dar-lhe o meu endereço? E se ela vier? Aliás, que venha; não faz mal...” Mas, provavelmente aquilo não era, então, a coisa principal e mais importante: precisava apressar-me e procurar salvar o quanto antes a minha reputação aos olhos de Zvierkóv e Símonov. Nisso é que consistia o mais importante. E, quanto a Liza, cheguei a esquecê-la completamente, na correria daquela manhã. Em primeiro lugar, era preciso pagar imediatamente a dívida da véspera a Símonov. Decidi-me a um recurso desesperado: tomar emprestados a Antón Antônitch quinze rublos. Como que de propósito, ele estava naquela manhã numa excelente disposição de espírito e me deu o dinheiro no mesmo instante em que o pedi. Fiquei tão contente com isto que, ao assinar o recibo, contei-lhe com displicência e certo ar de valentão que, na véspera, “farreei com uns amigos no Hôtel de Paris; era a despedida de um companheiro, um amigo de infância, pode-se dizer, e — sabe? — ele é um grande farrista e homem muito festejado; está claro que é de boa família. Tem fortuna considerável, uma carreira brilhante, é simpático, espirituoso, tem casos com essas senhoras, o senhor compreende. Bebemos ‘meia dúzia’ mais do que devíamos... e...”. Realmente, não havia nada demais. Tudo isto foi proferido com muita leveza, de modo desembaraçado e autossuficiente. Ao voltar para casa, escrevi imediatamente a Símonov. Ainda agora me extasio ao recordar o tom realmente cavalheiresco, bonachão e franco da minha carta. De modo hábil e nobre e, sobretudo, sem quaisquer palavras supérfluas, eu aceitava a culpa de tudo. Justificava-me, “se é que ainda se possa admitir que me justifique”, com o fato de que, por absoluta falta de hábito, ficara bêbado com o primeiro cálice, que eu teria bebido ainda quando os esperava no Hôtel de Paris, entre as cinco e as seis horas. Pedia desculpas principalmente a Símonov; pedia-lhe também que transmitisse as minhas explicações a todos os demais, sobretudo a Zvierkóv, a quem, “lembro-me como num sonho”, eu parecia ter ofendido. Acrescentava que iria pessoalmente à casa de cada um, mas estava com dor de cabeça e, sobretudo, envergonhado. Fiquei particularmente satisfeito com esta “certa leveza”, quase displicência até (aliás, de todo conveniente), que se refletiu de súbito em minha escrita e, melhor que quaisquer argumentos possíveis, lhes fazia compreender, num instante, que eu encarava com bastante independência “toda esta imundice de ontem”; não estou absolutamente abatido, conforme os senhores, ao que parece, pensam, mas, pelo contrário, olho para isto como convém a um cavalheiro que tranquilamente se respeita. Era como se dissesse: “Não se censura a realidade a um moço galhardo”. Há nisto até um tom brincalhão, como se eu fosse um marquês, não é verdade?, extasiava-me, relendo o bilhete. E tudo provém do fato de eu ser uma pessoa culta, evoluída! Outros, no meu caso, nem saberiam como escapar da rede, mas eu me livrei e estou farreando de novo, e tudo porque sou “um homem culto e evoluído de nosso tempo”. E, realmente, é possível que tudo isso tenha acontecido ontem por causa da bebida. Hum... não, não foi a bebida. Não tomei nem um pouco de vodca entre as cinco e as seis, enquanto os esperava. Menti a Símonov; menti de um modo desavergonhado; e agora também não tenho vergonha... Aliás, que me importa?! O principal é que me safei. Pus dentro da carta seis rublos, colei o envelope e pedi a Apolón que a levasse à casa de Símonov. Sabendo que o envelope continha dinheiro, Apolón tornou-se mais respeitoso e concordou em levá-lo. Ao anoitecer, fui dar uma volta. A cabeça ainda me doía e girava por causa do que sucedera na véspera. Mas, à medida que a noite caía e a escuridão se tornava mais densa, iam mudando e embaralhando-se as minhas impressões, e, depois delas, os meus pensamentos. Algo havia em meu íntimo, no fundo do meu coração e da minha consciência, que não queria morrer e se expressava numa angústia abrasadora. Eu me acotovelava sobretudo pelas ruas mais movimentadas, as do comércio, pela Mieschánskaia e a Sadóvaia, junto ao jardim de Iussupov. Gostava particularmente de passear por essas ruas sempre ao escurecer, juntamente quando nelas se adensa a multidão de transeuntes — gente do comércio e artesãos vão para casa após o trabalho diário, e em suas fisionomias se reflete uma preocupação que beira a raiva. Agradava-me justamente esta azáfama vulgar, este prosaísmo insolente. Mas desta vez toda aquela balburdia de rua me irritava ainda mais. Não conseguia de modo algum ficar em paz comigo mesmo, chegar a um resultado qualquer. Algo se erguia, incessante e dolorosamente, em meu espírito e não queria aquietar-se. Voltei para casa inteiramente mal-humorado. Era como se me pesasse na alma certo crime. Atormentava-me incessantemente o pensamento de que Liza podia vir a minha casa. Parecia-me estranho que, de todas aquelas recordações da véspera, a de Liza me torturasse de modo particular, inteiramente à parte. Ao anoitecer, eu já deixara de pensar em tudo o mais, e além disso estava inteiramente satisfeito com a minha carta a Símonov. Mas, em relação a Liza, eu, de certo modo, não me sentia satisfeito. Como se apenas ela me atormentasse. “E se ela vier?”, pensava eu sem cessar. “Ora, não faz mal, que venha. Hum... Já é ruim o simples fato de que há de ver, por exemplo, como eu vivo. Ontem, apareci diante dela tão... herói... e agora, hum! Aliás, foi mau que eu me tivesse deixado cair a tal ponto. Em casa, é simplesmente uma indigência. E me decidi, ontem, a ir jantar com semelhante traje! E o meu divã de linóleo, com enchimento à mostra na parte posterior! E o meu roupão, que não dá para cobrir o corpo! Que frangalhos... E ela há de ver tudo isto; e verá também o Apolón. Este calhorda certamente há de ofendê-la. Implicará com ela, para me fazer uma grosseria. E, eu, naturalmente, vou-me assustar como de costume, darei uns passos miudinhos diante dela, procurarei juntar as abas do roupão, começarei a sorrir, a mentir. Ui, como é ruim! E o pior de tudo não está nisso! Existe algo mais importante, mais repulsivo e ignóbil! Mais ignóbil, sim! E novamente, novamente vestir esta máscara mentirosa, desonesta!...” Chegando a este pensamento, explodi de vez: “Desonesta por quê? Desonesta como? Ontem, falei com sinceridade. Lembro-me bem disso, e havia em mim um sentimento autêntico. O que eu quis foi justamente despertar nela sentimentos nobres... Se ela chorou, foi bom, isto há de ser benéfico...”. Mas, apesar de tudo, não conseguia de modo algum acalmar- me. Em todas aquelas horas do anoitecer, mesmo depois que voltara para casa, quando já passava das nove e, segundo os cálculos, Liza não podia mais aparecer, parecia-me apesar de tudo vê-la e, principalmente, lembrava-me dela sempre na mesma posição. De tudo o que sucedera na véspera, havia um certo momento que se apresentava de modo particularmente vivo: era o momento em que eu iluminara o quarto com o fósforo e vira o seu rosto pálido, torcido, de olhar sofredor. E que sorriso lastimável, pouco natural, contraído, tinha ela naquele instante! Mas então eu ainda não sabia que, mesmo quinze anos depois, Liza ainda se representaria no meu espírito com o mesmo sorriso lastimável, contraído, desnecessário, que tinha naquele instante. No dia seguinte, mais uma vez, eu estava pronto a considerar tudo isto um absurdo, efeito dos nervos abalados e, sobretudo, um exagero. Sempre tive consciência deste meu ponto fraco e, às vezes, temia-o ao extremo: “Exagero tudo, e é isto que me faz capengar”, repetia a mim mesmo de hora em hora. Aliás, “aliás, apesar de tudo, Liza é bem capaz de vir” — eis o refrão com que terminavam todas as minhas reflexões de então. Eu me inquietava tanto que chegava às vezes a enfurecer-me. “Virá! Virá, sem falta!”, exclamava eu, percorrendo o quarto a passos largos. “Se não for hoje, será amanhã, mas com certeza há de me encontrar! Assim é o maldito romantismo de todos estes corações puros! Ó ignomínia, é estupidez, ó mediocridade de todas essas ‘almas vis e sentimentais’. Ora, como não compreender, como, parece-me, não compreender?...” Mas, neste ponto, eu mesmo me detinha, e numa grande comoção até. “Como foram poucas, tão poucas”, pensava eu de passagem, “as palavras necessárias, quão pouco idílio (e idílio falso, livresco, inventado), para revirar no mesmo instante toda uma alma humana ao jeito que se queria. Isto é que é virgindade! Isto é que é um solo intocado!”. Por vezes, vinha-me a ideia de eu mesmo ir vê-la, “contar-lhe tudo” e pedir-lhe que não fosse a minha casa. Mas com este pensamento erguia-se em mim uma raiva tal que, segundo parecia, eu teria esmagado aquela “maldita” Liza se ela aparecesse de repente a meu lado; tê-la-ia ofendido, coberto de escarros, expulsado, batido! Passou — e no entanto um dia, outro, um terceiro; ela não vinha, e eu comecei a tranquilizar-me. Ficava particularmente animado depois das nove, e, desenfreado, às vezes punha-me mesmo a sonhar, e com bastante doçura até. Por exemplo: “Estou salvando Liza, justamente pelo fato de que ela vem a minha casa e eu lhe falo... Faço-a progredir, cuido da sua instrução. A seguir, percebo que ela me ama, que me ama apaixonadamente. Finjo não Naquela ocasião, apenas começaram as manobras habituais dos “olhares severos”, fiquei imediatamente fora de mim e, enfurecido, voltei-me contra ele. Mesmo sem aquilo, eu já estava por demais irritado. — Espere! — gritei enfurecido, quando ele se voltava lenta e silenciosamente, de mão para trás, a fim de se retirar para o seu quarto. — Espere! Volte, volte, ordeno-lhe! Devo ter vociferado de modo tão incomum que ele se voltou e se pôs a examinar-me até com certa surpresa. Aliás, continuava a não dizer palavra, e isto justamente é que me enraivecia. — Como se atreve a entrar no meu quarto sem pedir licença e a olhar-me deste modo? Responda! Mas, depois de me olhar tranquilamente durante cerca de meio minuto, ele recomeçou a virar-se. — Espere! — rugi, correndo para junto dele. — Não se mova! Assim. Responda agora: para que veio olhar? — Se agora o senhor tem alguma coisa para me mandar fazer, a minha tarefa é executar — respondeu, depois de um novo silêncio, ciciando baixo e espaçadamente, as sobrancelhas erguidas, e tendo girado calmamente a cabeça de cima de um ombro a outro, e tudo isto com uma tranquilidade aterradora. — Não é isto, não é isto que estou perguntando a você, carrasco! — gritei, trêmulo de raiva. — Eu mesmo vou dizer a você, carrasco, para que vem até aqui: está vendo que não lhe pago o salário; você mesmo, por orgulho, não quer se inclinar e pedir, e vem para me castigar com seus olhares estúpidos, para me atormentar, e você, carrasco, nem su-u-uspeita como isto é estúpido, estúpido, estúpido, estúpido, estúpido! Recomeçou a voltar-se em silêncio, mas eu o segurei. — Ouça! — gritei-lhe. — Aqui está o dinheiro, você vê: está aqui (Tirei-o da mesinha.) Todos os sete rublos, mas você não os

IX §

E corajosa e livremente em minha casa, Entra, senhora e soberana! (Do poema de Niekrassov, já citado) Achava-me em pé diante dela, abatido, humilhado, repulsivamente envergonhado e, ao que parece, sorria, procurando com todas as forças cobrir-me com as abas do meu roupãozinho de algodão, puído, exatamente como, ainda há pouco, eu imaginara num momento de desânimo. Decorridos alguns instantes, Apolón, que estivera ali parado, mais alto que nós, afastou-se, mas não me senti aliviado com isto. O pior foi que ela também ficou de repente confusa, e de um modo tal que nem eu esperava. Isto se deu quando me olhava, está claro. — Sente-se — disse eu maquinalmente, pondo para ela uma cadeira junto à mesa e sentando-me no divã. Obedeceu-me no mesmo instante, dirigindo para mim os olhos bem abertos e, provavelmente, esperando que eu fizesse algo. Aquela ingenuidade foi justamente o que me enfureceu, mas contive-me. Eu poderia esforçar-me em não reparar em nada, como se tudo se passasse da maneira mais natural, e ela... E senti confusamente que ela haveria de me pagar caro por tudo aquilo. — Você me encontrou numa situação esquisita, Liza — comecei gaguejando, sabendo que era justamente daquele modo que não devia começar. — Não, não, não fique imaginando coisas! — exclamei vendo que ela de súbito corara. — Não me envergonho da minha pobreza... Pelo contrário, orgulho-me dela. Sou pobre, mas nobre de caráter... É possível ser pobre e ter nobreza — balbuciei. — Bem... você quer chá? O nosso silêncio durava já uns cinco minutos. O chá estava sobre a mesa; não o tocamos: eu chegara a um estado tal que, de propósito, não queria começar a tomá-lo, a fim de tornar a situação dela ainda mais penosa, e ela sentia embaraço em começar. Por algumas vezes, olhou-me com uma perplexidade triste. Eu, obstinado, calava-me. O maior sofredor, sem dúvida, era eu próprio, pois percebia completamente toda a repulsiva baixeza da minha rancorosa estupidez e, ao mesmo tempo, não podia de modo algum conter-me. — Eu quero... sair de lá... de uma vez — começou ela, com o propósito de romper o silêncio, mas, coitada!, justamente disso é que não se devia começar a falar, num momento que já era assim estúpido, a um homem tão estúpido como eu. O meu coração ficou dolorido de compaixão, vendo a sua falta de jeito e retidão desnecessária. Mas algo disforme esmagou em mim no mesmo instante toda compaixão, e até me espicaçou ainda mais: que se perca tudo no mundo! Passaram-se mais cinco minutos. — Eu não vim estorvá-lo? — insinuou ela com timidez, quase imperceptivelmente, e começou a levantar-se. Mas apenas vi esta primeira explosão de dignidade ofendida, fiquei trêmulo de furor e imediatamente perdi a contenção. — Diga-me, por favor, para que veio a minha casa? — comecei, perdendo o fôlego e até mesmo sem atentar para a ordem lógica das minhas palavras. Eu queria dizer tudo de uma vez, numa rajada; nem me preocupou sequer por onde começar. — Por que você veio? Responda! Responda! — exclamava, quase perdendo a consciência de mim mesmo. — Vou dizer-lhe, mãezinha, para que veio aqui. Veio porque eu disse então a você palavras piedosas. Pois bem, você ficou enternecida com elas, e agora quis ouvir de novo “palavras piedosas”. Pois saiba, saiba de uma vez, que eu então estava rindo de você. E agora também rio. Por que está tremendo? Sim, eu ria! Eu tinha sido ofendido, ao jantar, pelos que estiveram

X §

Um quarto de hora depois, eu estava andando a passos largos, numa impaciência furiosa, de um canto a outro do quarto, e a cada instante acercava-me do biombo e espiava Liza por uma pequena fresta. Ela estava sentada no chão, a cabeça reclinada sobre a cama, e provavelmente chorava. Mas não ia embora, e justamente isto é que me irritava. Desta vez, ela já sabia tudo. Eu a ofendera para sempre, mas... não há o que contar. Ela adivinhara que o arroubo da minha paixão fora justamente uma vingança, uma nova humilhação, e que ao meu ódio de antes, quase sem objeto, se acrescentara já um ódio pessoal, invejoso, um ódio por ela... Aliás, não afirmo que ela compreendesse tudo isto com nitidez; em compensação, compreendera inteiramente que eu era um homem vil e, sobretudo, incapaz de amá-la. Sei que me dirão que isto é inverossímil; que é inverossímil ser tão malvado e estúpido como eu; acrescentarão talvez que era inverossímil não passar a amá-la ou, pelo menos, não avaliar aquele amor. Mas inverossímil por quê? Em primeiro lugar, eu não podia mais apaixonar-me, porque, repito, amar significava para mim tiranizar e dominar moralmente. Durante toda a vida, eu não podia sequer conceber em meu íntimo outro amor, e cheguei a tal ponto que, agora, chego a pensar por vezes que o amor consiste justamente no direito que o objeto amado voluntariamente nos concede de exercer tirania sobre ele. Mesmo nos meus devaneios subterrâneos, nunca pude conceber o amor senão como uma luta: começava sempre pelo ódio e terminava pela subjugação moral; depois não podia sequer imaginar o que fazer com o objeto subjugado. E o que há de inverossímil nisso, se eu já conseguira apodrecer moralmente a ponto de me desacostumar da “vida viva”, e haver tido a ideia de